sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Borboletas no estômago (Parte V)

Se alguém me perguntasse como eu tinha conseguido chegar até o meu quarto, eu não saberia responder com exatidão. A única coisa que eu conseguia lembrar, ainda assim porque ficava martelando insistentemente na minha cabeça - e fazia meu peito latejar como nunca - era a imagem daquele coração grande e cafona desenhado na maldita página daquela maldita agenda. De resto, não sabia de mais nada. Não tinha a menor ideia de onde eu havia tirado forças para desgrudar o rosto do chão frio da escadaria, me levantar e voltar pra casa. Tudo parecia um imenso borrão cinza, onde eu era incapaz de distinguir qualquer outra coisa que não fosse minha própria dor.
Acho que é assim que funciona, né? Quando se chora e se sofre a ponto de querer deixar de existir, o corpo liga o piloto automático. Por alguns instantes - ou até mesmo por semanas e meses - você passa a fazer as coisas e nem percebe que está fazendo. Você pode até caminhar sobre espinhos; seus pés vão sangrar pra caramba, mas você continua caminhando porque, no final das contas, é assim que tem que ser. Acho que eu deveria agir dessa forma dali em diante. Caminhar por entre os espinhos da minha vidinha patética, sangrando pra caramba, mas ainda assim, seguindo...
Mas como? Como eu faço isso sem a Carina? Como vai ser levantar todas as manhãs, ir pra escola, encontrar com ela e fingir que eu continuo o mesmo cara de sempre, mesmo sabendo que por dentro eu me sinto machucado? Vai ser foda. Muito foda mesmo...
Naquele momento, abraçado ao travesseiro, comecei a pensar seriamente na possibilidade de pedir pros meus pais me trocarem de escola. Sei lá. Podia falar que tava achando tudo uma merda, que os professores não tavam ensinando droga nenhuma... (Não... Eles não têm culpa da minha dor de cotovelo.) Também seria uma boa se a gente mudasse do prédio... Esse argumento seria infalível! Eu podia dramatizar bastante, dizendo que quase morri soterrado por uma mulher imensa de gorda e que duas meninas histéricas quase me deixaram surdo de tanto gritar , dentro de um elevador caindo de velho... (Mas será que se a gente mudar, a dor não vai seguir junto comigo? E eu não vou acabar sentindo saudades do lugar onde passei praticamente a minha vida inteira? Onde eu descobri o quanto o amor é bom e ruim pela primeira vez?) Sei lá... A única coisa que eu tinha realmente certeza naquele instante, é que tão cedo eu não queria ver a Carina na minha frente. Ver aqueles olhos lindos, aquele cabelo todo cacheadinho, cheirando a frutas vermelhas, aquele rosto perfeito e radiante, ia me doer mais que tudo no mundo... E quando eu pensava que ela era inteira, de corpo e alma só do Cristiano Labate, eu sentia uma raiva tão grande, que eu bem seria capaz de enfiar um murro no meio da cara daquele babaca! Isso sim seria uma boa! Deixar aquele imbecil sem os dentes da frente. Queria ver se alguma menina na escola ia olhar pra ele! Era até capaz dos outros meninos me carregarem nos braços, como um grande herói, um salvador da pátria! Eles mandariam então, fazer uma estátua bem grande minha e colocar uma placa com os dizeres: MARCELO: ESSE É O CARA!!!!
Mas é claro que eu não ia fazer nada disso. Até porque o Cristiano Labate era faixa preta no caratê e fera em jiu-jitsu. Já imaginaram? Eu chego no maior apetite de arrebentar o cara de pancada e quem acaba arrebentado sou eu? Não, deixa quieto. Melhor ficar arrebentado só por dentro mesmo... O jeito era ficar ali, quieto no meu canto. Tentando afastar a Carina da minha cabeça e do meu coração. E não pensar mais nela. Nunca mais...
- Marcelo? - Ouvi a Lurdinha me chamando. Ela torceu a maçaneta, mas a porta estava trancada. (E eu também não me lembrava de tê-la trancado.) Deu três batidinhas e chamou de novo. - Marcelo?
- Que é que foi, Lurdinha? - Perguntei, tentando disfarçar a voz. A vontade de chorar começava a estrangular minha garganta e meus olhos queriam arder. E eu queria me entregar a tudo aquilo. Queria chorar sozinho, sofrer sozinho, gritar sozinho... Com muito custo, pedi: - Me deixa quieto, por favor...
- Sua mãe chegou... Ela pediu pra você dar um pulo lá na sala... - Avisou sem levar em consideração o meu pedido.
- Diz pra ela me deixar em paz, Lurdinha... - Respondi, agora com a voz totalmente deformada. Não sei se pelo choro ou pelo grito que tentei dar. - Fala pra ela que depois eu vou... Tô ocupado agora!
Ouvi a Lurdinha se afastando, pelo barulhinho irritante que os chinelos dela faziam no piso. Me agarrei com mais força ao travesseiro. Eu sabia que minha mãe não ia deixar barato. Se tinha uma coisa que ela não sabia me dar era sossego. Depois que eu entrei na adolescência então, parecia que um alarme soava dentro dela dia e noite. Como se ter um adolescente em casa, fosse tão perigoso quanto armazenar material radioativo numa vasilha de plástico! Ninguém merece! E eu, muito menos! Eu sabia que era uma forma dela demonstrar preocupação (até demais, por sinal!), porque na época dela não tinha a metade das doideiras que tem hoje em dia, etc e etc... Enfim, aquelas coisas nada a ver que ela adorava mencionar quando queria me dar um esporro ou uma lição de moral qualquer. Mas eu não tava afim... Não queria ouvir nada do que ela tinha pra perguntar ou dizer. Só queria ficar quieto com a minha dor de cotovelo.
Mas como eu disse, ela não ia deixar barato. Fechei os olhos e comecei a contar mentalmente:
"Um... dois... três... qua..."
Nem deu tempo de chegar no número quatro. Ouvi as batidas fortes, enérgicas na porta.
- Marcelo? - Ela chamou.
- Morreu! - Respondi já começando a ficar de mau-humor.
- Abre essa porta! - Falou séria.
- Tô pelado! - Retruquei com deboche.
- Então se veste! - Mandou.
- Tô com preguiça! - Respondi rápido. Me encolhi ainda mais na cama e cobri a cabeça com o travesseiro pra abafar as outras duzentas batidas que ela deu na porta. Putz, será que era difícil entender que eu não tava com saco pra conversinha mole? Na certa era pra me cobrar se eu liguei no ortodontista marcando hora. (Bosta de aparelho! Só serviu pra me deixar ainda mais esquesito, ainda mais feio!) Que saco! Que merda! Será que ela não podia me deixar em paz?
"Não... É claro que não..."
Pois eu mal acabara de pensar isso, ouvi o barulho metálico vindo do outro lado. Um giro, depois outro. Logo em seguida, via a maçaneta sendo torcida e záz! Minha mãe entrou no quarto sem a menor cerimônia. Aquilo fez o meu sangue ferver! Minha vontade foi de mandar ela ir cagar! Sentei na cama e com a maior cara feia do mundo, fiz questão de reclamar:
- Puta merda, mãe! Que falta de respeito, hein? Entrando assim, no quarto dos outros!
- Eu tenho uma cópia da chave, esqueceu? - Respondeu com uma das mãos na cintura e a cópia da chave do meu quarto na outra.
- É... - Respondi irritado. - Esqueci que nessa casa a gente não tem privacidade nem no próprio quarto!
- Fizesse por merecer, mocinho! - Respondeu sem se abalar. - E depois, pra que ficar a tarde toda trancado no quarto? Vai fazer alguma coisa, menino!
- Eu tava fazendo, mãe... - Respondi cada vez com menos paciência. - Eu tava aqui, deitado, de boa!
- Deitado, Marcelo? - Falou impaciente. - Parece até que tá com anemia ou verme! Só pensa em dormir!
- Tem dó, né, mãe! - Bufei. - O que eu faço ou deixo de fazer no meu quarto, é problema meu! - Tomei um fôlego e continuei sem dó: - Engraçado isso, né? Quando você se tranca no teu quarto sozinha ou com o meu pai, eu não vou lá te encher o saco! Então por que você sente prazer em encher o meu?
Minha mãe prendeu a respiração. O meu argumento pareceu ter caído sobre ela como o peso de duas toneladas. Por alguns instantes eu pensei que ela fosse partir pra cima de mim e me dar uma tremenda surra. Pra falar a verdade, eu bem que merecia. Nunca tinha batido assim, de frente com ela. Depois de alguns segundos, que pra mim pareceram uma vida, ela finalmente disse:
- Desculpa, filho... Eu só fiquei preocupada...
- Preocupada com o quê? - Perguntei com uma pontinha de mal-humor e outra de receio em desafiá-la novamente. - Se eu tava aqui usando droga, é isso?
Minha mãe me encarou com aquele olhar que mesclava espanto, indignação e uma certa mágoa e continuou:
- A Lurdinha me ligou. Ela disse que você voltou pra casa com um jeito de quem tinha chorado, com a roupa amassada... Aí eu resolvi dar uma escapada do serviço... Pra ver se tava tudo bem com você...
Aquilo me pesou no peito de uma forma insuportável. Senti tanto remorso, tanta vergonha! Como eu tinha sido estúpido, cara! Tava tão preocupado com a minha dor, com a minha tristeza, que não me importei em dar uma patada na pessoa que mais se importava comigo... Tá certo que ela às vezes passava da conta, que era superprotetora demais, mas putz, ela não merecia ouvir aquilo! Olhei mais uma vez pra minha mãe, que continuava me observando com aquele olhar sentido e ao mesmo tempo cheio de amor e vontade de ajudar. Tentei balbuciar um "desculpa, mãe...", mas senti que as lágrimas começavam a escorrer sem que eu pudesse controlar. Abracei minhas pernas, escondi a cabeça envergonhado e chorei tudo o que eu ainda teria pra chorar ao longo daquela tarde. Minha mãe sentou na beirada da cama, me abraçou forte e ficou acariciando os meus cabelos. Quis falar alguma coisa, mas toda vez que tentava, soluçava a ponto de achar que fosse morrer sufocado. Quando ela finalmente percebeu que eu já estava ficando mais calmo, segurou meu rosto entre as mãos e, enxugando as minhas lágrimas, perguntou:
- E agora? Você vai ou não vai me contar o que tá acontecendo?
- Deixa quieto, mãe... - Respondi soluçando um pouco e me afastando dela.
- Deixa quieto, coisa nenhuma! - Disse. - Você nunca foi de chorar assim, filho... Todo metido a durão, cheio de si... Cheio de marra, como você e os seus amigos costumam falar... - Ela deu uma risadinha rápida. Depois de um rápido silêncio, ela perguntou, como se tivesse certeza: - É o coração, né? -
Dei um suspiro sentido. Fiz que sim com a cabeça.
- Foi alguém que machucou? - Quis saber, dando um sorriso doce e cheio de cumplicidade.
- Não foi, não, mãe... - Respondi mexendo displicentemente no cadarço do meu tênis. E antes que meus olhos começassem a arder de novo, continuei: - Eu mesmo é que machuquei ele. Bancando o idiota, o iludido, o babaca... Também, né? Que menina ia ser doida de querer alguma coisa comigo?
- Não fala assim, filho... - Pediu. - Você é um menino tão bacana, tão cheio de qualidades...
- ...tão sem graça! - Completei com certa tristeza.
- Eu não acho! - Disse ela com carinho.
- Porque você é minha mãe, né? - Respondi num muxoxo.
- E quer saber? - Falou num sorriso maroto. - Tenho certeza que a Carina também não acha...
Foi como se eu tivesse recebido uma descarga elétrica violenta.
- A Ca... a Carina? - Gaguejei, sentindo as bochechas corarem. - Que é isso, mãe! Nada a ver... - Tentei disfarçar, mas acho que a minha voz trêmula e meus olhos arregalados não ajudaram a convencê-la. Antes que eu tentasse lançar mão de outro argumento, minha mãe disse sorrindo:
- Marcelo, Marcelo... Jura que você achava que eu não tinha percebido nada?
- Não, mãe... é que... - Tentei articular alguma coisa, mas ela me interrompeu:
- Filho, você se esquece que eu vou a todas as reuniões na tua escola? Que eu sei de cada nota que você tira? Então! Quando você começou com essa história de pedir pra Carina te ajudar, te dar uma aula particular aqui, outra ali... Hum! Eu logo percebi que tinha alguma outra coisa por trás disso tudo... - Ela deu uma piscadinha pra mim e eu senti vontade de sumir, de tanta vergonha! Ela continuou: - Você é tão bom aluno, que fica difícil de acreditar que você esteja com dificuldade em alguma matéria, filho! Eu não sei como a Carina não percebeu isso também! - Disse achando graça.
- Cara, que mico! - Disse, ficando mais e mais vermelho.
- Mico, por quê? - Perguntou achando graça da minha vergonha. - Só porque você gosta dela e eu percebi? - E antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela continuou, agora num tom mais discontraído, quase brincalhão: - Eu boto a maior fé nesse namoro!
- Que namoro, o quê, mãe! - Disse com azedume. - A Carina não quer e nunca vai querer nada comigo! Quem tem como namorado um cara como o Cristiano Labate não precisa dum cara esquisito como eu!
- Foi ela quem te disse isso? - Perguntou franzindo a testa.
- Não. Eu sei que é assim e pra mim já é o bastante! - Respondi num suspiro.
- Se não foi ela quem te disse isso, como você pode ter tanta certeza assim? - Quis saber.
Respirei fundo, como se buscasse uma força sei lá de onde e, levantando da cama, abri a gaveta da minha escrivaninha e tirei lá de dentro, a maldita agenda. Folheei rápido página por página, até que finalmente encontrei aquele maldito coração desenhado. Estiquei a agenda pra minha mãe, que olhou o desenho do coração, mas não entendeu.
- Isso aí significa exatamento o quê, Marcelo?
- Essa é a agenda da Carina, mãe... - Respondi.
- Então foi você que pegou a agenda dela? Marcelo, não vai me dizer que você ficou... - E antes que ela pudesse continuar e começar uma nova ladainha, fui logo falando:
- Não, mãe... - Disse. - Se bem que vontade não me faltou, mas aí eu pensei melhor e percebi que, antes de qualquer coisa, a Carina é minha amiga, né?
- Que bom que você tenha pensado assim, filho... - Disse minha mãe, com uma pontinha de satisfação.
- Mas as coisas não saíram como eu esperava... - Continuei.
- Por quê? - Perguntou interessada.
Fiquei por alguns instantes em silêncio, mordendo os lábios e pensando em como contaria tudo o que se passara naquela tarde sem correr o risco de chorar novamente. Respirei fundo mais uma vez e comecei a contar tudo pra minha mãe. Desde o instante em que eu decidira devolver a agenda pra Carina, até o momento em que eu descobri aquele coração ridículo desenhado em uma das páginas. Quando terminei, ela me encarou séria e perguntou:
- Então é só isso?
- Só isso, mãe? - Perguntei incrédulo. - Você acha pouco? Como eu posso ter alguma esperança de conquistar a Carina se ela gosta do Cristiano?
- Por um acaso o nome dele está escrito aí?
- Não, mas a inicial do nome dele tá! A não ser que a Carina esteja ficando com outro cara cujo nome comece com a letra C! - Argumentei. E depois, com pesar na voz, continuei: - Mas é o Cristiano sim, mãe... Eu tenho certeza! O Ricardo me falou isso na aula hoje...
- Talvez ela tenha feito esse desenho e escrito essas iniciais há muito tempo, Marcelo... De repente, esse tal Cristiano nem faça mais parte do pensamento dela... - Arriscou minha mãe, tentando me animar. Mas eu não estava nem um pouco esperançoso.
- Se ele não faz, mãe, com toda certeza é outro cara que faz... - Disse suspirando. - A Carina me vê só como um bom amigo... Só isso...
- E por que você não fala sobre isso com ela? - Sugeriu.
- Tá doida, mãe? Eu vou dar esse mole pra quê? - Perguntei, ficando agoniado só de pensar nessa possibilidade.
- Pois eu acho que você deveria conversar com ela sim, Marcelo... - Incentivou minha mãe.
- E tomar um fora, é isso? - Perguntei contrariado.
- Mas pelo menos você vai abrir o coração, filho... Vai ter a oportunidade de falar sobre tudo o que você sente por ela...
- Como se fosse fácil! - Bufei.
- Não é fácil, Marcelo... Mas você também não acha que é difícil ficar sufocando tudo o que você sente, por causa de um medo bobo?
- Medo bobo, mãe? E se eu perder a Carina pra sempre? - Perguntei em agonia.
- Medo bobo, sim! Porque você prefere ficar aqui, trancado nesse quarto chorando, curtindo dor de cotovelo, do que encarar a verdade de frente. É um risco, eu sei... Ninguém gosta de tomar um fora. Mas, se abrindo com ela, você pelo menos vai tirar essa espada de cima da sua cabeça. Se ela te aceitar, ótimo! Já disse que dou a maior força pra esse namoro...
- E se ela não me aceitar, mãe? - Interrompi, já com os olhos ardendo.
- Se ela não te aceitar, Marcelo... - Ela parou de falar, como se quisesse escolher as palavras certas. Fez então um carinho na minha perna e continuou: - Por mais que doa, por mais que você chore, vai ser melhor do que você continuar curtindo essa paixão platônica, que tá te fazendo sofrer tanto... Você vai poder continuar seguindo o seu caminho, a sua vida... E quando a dor passar, você vai lembrar disso com uma certa saudade... E é até capaz de se achar ridículo de ter sofrido tanto! Aí você vai perceber que a vida continua e a gente tem que continuar caminhando...
- É... - Considerei franzindo a testa.
- Mas eu quero que você saiba de uma coisa, viu? - Falou com convicção. - O que quer que aconteça, você ficando com ela ou não, lembra sempre que eu vou estar aqui, tá? Pra te consolar, pra te orientar, ou até mesmo pra te abraçar e ficar do seu lado, quieta...
- Valeu, mãe... - Agradeci me sentindo mais leve. - E desculpa pela patada, viu? Não queria ter falado aquilo pra você...
- Eu sei, filho... Agora vem cá, vem... - Pediu abrindo bem os braços. Ela me abraçou tão forte, que o medo, a insegurança, o desejo de rejeição foram embora por completo. Senti que poderiamos ficar ali, abraçados o resto do dia que ela não iria se importar. Mas a realidade parecia querer me chamar para enfrentá-la... Ouvimos três batidinhas na porta.
- Dá licença?
- Entra, Lurdinha... - Pediu minha mãe.
Lurdinha foi entrando meio sem jeito, como que se ressentindo por interromper alguma coisa.
- Marcelo, a Carina tá lá na sala.
Minha mãe trocou um rápido olhar comigo. Um olhar que me trazia coragem, certeza e convicção.
- Fala pra ela que eu já vou, Lurdinha. Por favor...
Lurdinha saiu do quarto. Minha mãe segurou meu rosto entre as mãos e disse mais uma vez:
- Lembra que eu tô aqui, viu? Pro que der e vier...
- Tá bom, mãe... - Respondi confiante.
- Agora deixa eu voltar pro trabalho, que tem um cliente me esperando... - Ela se levantou depressa e foi saindo. Quando já estava na porta, ela se virou, retirou do bolso a cópia da chave do meu quarto e jogou pra mim. - Toma!
- Ué! - Estranhei pegando a chave. - Mas por quê?
- Você cresceu, filho... - Respondeu. - E eu tenho que me acostumar com isso, não é mesmo? Beijinho e coragem, hein?
Ela saiu, encostando a porta novamente. Fiquei ainda alguns minutos sentado na cama, observando a agenda da Carina bem perto de mim. Não, eu não estava com vontade de ler nada que estivesse ali dentro. Mas depois daquela conversa que minha mãe e eu tivemos, tive a certeza de que, por mais difícil que fosse falar dos meus sentimentos, por mais difícil que fosse me abrir de forma tão completa pra uma garota, era muito mais difícil - e com certeza ridículo - continuar agindo feito um babaca, sofrendo tanto por causa daquelas iniciais estampadas numa das páginas daquela agenda, fingindo ter dificuldades em matemática ou química pra poder passar alguns momentos na companhia dela, enfim, sendo um completo idiota por ficar me alimentando de meias-verdades e certezas que poderiam ser infundadas. Não... Se eu realmente amava a Carina, como o meu coração insistia em afirmar, eu teria de fazer alguma coisa. Mesmo que me causasse dor a recusa dela, mesmo que o fora que eu fatalmente correria o risco de levar, me fizesse chorar por alguns dias, semanas e até - quem sabe? - meses. Melhor correr o risco de tê-la por inteiro do que só pela metade, me tratando só como um bom amigo.
Aquele raciocínio firme, decidido e seguro, pareceu aquietar meu coração. Era como se eu tivesse enxergado pela primeira vez em muito tempo, um raio de sol, de esperança, em meio ao nevoeiro da minha incerteza, da minha hesitação. Não dava mais pra esperar.
"Coragem, Marcelo!!!" Ecoava dentro de mim. Levantei da cama, coloquei a agenda da Carina no bolso do meu bermudão e dei um pulo no banheiro. Lavei bem meu rosto, como se quisesse apagar as marcas daquele Marcelo arrasado de alguns instantes atrás. Por alguns segundos, fiquei me observando no espelho. O rosto marcado por algumas espinhas, os cabelos em desalinho, o aparelho ortodôntico, os olhos negros. Olhos de um cara decidido, como nunca havia sido antes. Em meio àquele turbilhão de coisas que rolaram ao longo do dia, não pude deixar de me considerar um sobrevivente. Um cara que caiu e que, agora com muita vontade, começava a se levantar. Se nesse percurso eu caísse novamente, tudo bem. O que eu não poderia perder de jeito algum, era a vontade de levantar e começar de novo. Senti aquele grito de "Coragem, Marcelo!!!" reboando por cada centímetro do meu corpo e, dando uma última olhada pr'aquele novo cara no espelho, virei as costas e fui encontrar a menina que eu tanto amava.
(Continua)