quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Borboletas no estômago (Parte III)

Como eu já esperava, a primeira coisa que o Ricardo veio perguntar assim que entrei na classe, era se eu havia conseguido falar com a Carina. Contei pra ele da nossa conversa, inclusive, a forma estranha como ela havia me tratado. E como eu já esperava, ele ficou puto comigo:
- Cara, mas você é mesmo um mané! - Cochichou, me dando um cascudo pra lá de doído.
- Ai, ai, ô! - Reclamei, massageando a cabeça. - Que culpa eu tenho se me faltou coragem? Te juro, meu! Eu quase falei, mas na hora, acabou saindo outra coisa completamente diferente!
- É, zé mané? E o que foi que saiu? - Perguntou Ricardo impaciente.
- Pedi pra ela me ajudar com química... - Falei baixo e desanimado.
- Marcelo, como tu é original, rapaz! - Ironizou. - Você tem cara de pedir pra uma mina como a Carina te ensinar química, matemática e o escambau, mas na hora de pedir um beijo... - Ricardo nem continuou. Ele tava tão chapado comigo, que se pudesse, ele me dava uma surra ali, na frente de todo mundo. Tentei reagir:
- E quem você pensa que é pra falar desse jeito, cara? - Disparei. - Até parece que você é o conquistador número um escola!
- Número um, não... - Disse ele, se emproando todo. - Mas o número dois, com toda certeza eu sou! - E riu gostoso.
- Ah, tá! Falou o galã! - Debochei, rindo também.
- Não, mas agora é sério, Marcelão: você tem que tomar uma atitude, meu! - Aconselhou Ricardo dando uns tapinhas nas minhas costas. - Você vai deixar pra falar com a Carina na hora em que ela tiver ficando com outro?
- Você já me disse isso na hora do intervalo, lembra? - Falei.
- Lembro. Mas parece que você não levou nem um pouquinho à sério... - Respondeu Ricardo torcendo o nariz pra mim. E me puxou pra mais perto, como se estivesse pra me contar um segredo de estado: - Agora eu vou te falar um negócio... Eu não devia me meter, mas como tu é meu amigo, acho que eu tenho que te avisar.
- Nossa, o que foi? - Meu coração pareceu se encolher.
- A Flávia me contou que o Labate... Você conhece o Labate, né? - Perguntou, interrompendo a revelação que estava prestes a fazer. Se ele havia sabido de alguma coisa pela Flávia, eu podia confiar. A Flávia era a melhor amiga da Carina e, de uns tempos pra cá, estava ficando com o Ricardo.
- O Cristiano Labate, da oitava C? - Perguntei, sentindo o coração se encolher ainda mais.
- Esse mesmo! - Disse Ricardo. E me puxando pra mais perto, cochichou: - A Flávia me contou que ele anda dando umas migué, querendo saber se a Carina tá com alguém... Ela falou que ele adicionou a Carina no orkut, no msn...
- E a Carina? - A pergunta veio quase estrangulada. Meu coração ficou menor que um grão de feijão, mas pulsava com tanta violência, que doía no peito. - A Carina tá curtindo?
- Ah, isso ela não falou, não... - Respondeu Ricardo, como que encerrando o assunto. Filho da mãe! Se era pra contar a história só pela metade, era melhor não ter contado! Meu estômago se revirou dez, quinze, vinte vezes. Não, não eram as borboletas, mas o medo de perder a Carina pra outro. E que outro! Se a Carina decidisse ficar com ele, seria fácil de entender... O Cristiano Labate era o cara! Podia não ser muito bom quando abria a boca, pois tinha uns papinhos nada a ver, mas verdade seja dita, ele era o sonho de consumo da metade das meninas da escola. Nós, os pobres e meros garotos, parecíamos deixar de existir quando ele estava por perto. Dei um suspiro sentido. Não havia a menor chance! O cara estava em vantagem: sabia como chegar numa menina, já estava conversando com a Carina no msn... Talvez até... Não. Eu não queria acreditar no que me passou pela cabeça. E... "SE ELES JÁ ESTIVEREM FICANDO???????????"
- O que foi, Marcelão? - Perguntou Ricardo, vendo minha cara de derrota.
- E você ainda fica me incentivando a chegar na Carina... - Murmurei, sentindo um nó na garganta, uma vontade doida de chorar. Dei uma espiada na fileira de carteiras perto da janela. Carina copiava a matéria compenetrada, até que largou a caneta por alguns instantes e soltou a presilha que segurava aquele cabelo lindo num rabo de cavalo. Aqueles cachos pareceram dançar por estarem livres, soltos. Ela então, virou a cabeça e, por um breve momento, seus olhos encontraram os meus. Fiquei perdido na imensidão daqueles olhos, sentindo uma vontade louca de desaparecer dentro deles, até chegar ao coração dela. Carina me observou séria. "O que ela ia ver num cara como eu?" Pensei, sentindo o peito ardendo. Talvez porque pudesse ler pensamentos, ou porque a minha cara de cachorro sem dono parecia evidente demais, ela pareceu achar graça de alguma coisa, abrindo aquele sorriso cada dia mais lindo. Fez um aceno pra mim, pegou a caneta e recomeçou a copiar a matéria.
- Corre enquanto é tempo, Marcelão... - Aconselhou Ricardo, que ficou observando nós dois. - É melhor arriscar do que ficar chupando o dedo depois!
- Acho que já era, Ricardo... - Comentei, dando um suspiro desanimado, derrotado. - O Labate é mil vezes melhor do que eu...
- Deixa de falar abobrinha, ô! - Disse impaciente. - O Labate pode ser bonitão, pode ficar com qualquer menina, mas você acha que a Carina vai preferir ele do que você?
- É óbvio, né? - Respondi.
- Larga mão, Marcelo! - Disse Ricardo. E eu notei que ele ia agora tentar levantar a minha moral: - Você é gente fina, inteligente... - Ele ficou em silêncio por alguns segundos, e considerou: - Tá certo que, você não é bonitão como o Labate, que não faz muito sucesso com as meninas, mas... e daí? Tenho certeza de que se a Carina pudesse escolher, ela ia escolher você!
- Ainda bem que você me anima! - Disse achando graça.
- Mas é verdade! Você e a Carina formam um casal bacana. Vai ser mancada se vocês não acabarem ficando juntos... - E mudando o tom, disse: - Agora, eu só não entendo uma coisa...
- O quê? - Perguntei curioso.
- Como é que, a Carina, sendo tão inteligente, foi cair nesse seu papinho de tá mal em matemática e química? Você é tão ou mais cdf que ela!
- Sei lá! - Respondi. - Achei que valia a pena arriscar...
E rimos baixinho. Senti então, que um par de olhos nos observava com atenção. Como os de uma águia no topo de uma árvore observando a presa distraída, no solo. Ricardo e eu vimos o professor Giroto, de química, nos olhando sério, com a boca retorcida e as mãos na cintura de barril. Pior do que isso, foi ver que toda a classe também nos olhava, dando risinhos disfarçados, achando graça. O professor Giroto era assim: ensinava química como ninguém. Tolerava que, os alunos debatessem durante a aula, mas somente coisas relacionadas à matéria. Agora, quando ele estava passando a matéria no quadro, o silêncio tinha que imperar. Do contrário, ele parava, punha as mãos na cintura e ficava olhando para o aluno que estivesse conversando até o infeliz se tocar. Quando era só isso, tudo bem. Mas naquele dia, quando ele viu o Ricardo e eu aos cochichos, não se conteve em comentar maldoso:
- Meus amores! Vamos deixar pra discutir a relação fora da sala de aula? - Disse irônico e venenoso. A classe inteira explodiu em risadas. Foi a maior zoação! Ricardo resmungou alguma coisa, pegou o caderno e começou a copiar a matéria. Fiquei vermelho feito um pimentão. Não pelo comentário do Giroto. Com isso eu já tava acostumado. Mas depois fiquei pilhado, pensando se por um acaso alguém tinha ouvido a gente falar da Carina.
- Discutir a relação! - Resmungou Ricardo. - Ele acha que todo mundo é baitola igual ele!
Sufoquei o riso. Comecei a copiar a matéria, lembrando com desânimo que ia ter que aguentar o mala daquele professor mais quarenta e cinco minutos. Aula dupla de química em plena sexta-feira, ninguém merece!
À medida que o tempo foi passando, a galera foi se esquecendo da brincadeira que o Giroto fez comigo e com o Ricardo. Quem parecia não ter esquecido ainda era o Ricardo. Sempre que levantava os olhos pra copiar a matéria no quadro, ele dava uma olhada feia pro Giroto, como se quisesse matá-lo só com o olhar. Rabiscando alguma coisa no canto da folha, ele falou entredentes:
- Sacana! Zoando com a sexualidade dos outros assim! - E dizendo isso, bufou forte. - Se não fosse um mico federal pai ou mãe vir na escola pra reclamar, eu contava pros meus pais o que esse mala sem alça e sem rodinha disse!
- Desencana, Ricardo! - Aconselhei baixinho. - Era só zoeira...
- Hum! - Deu um muxoxo contrariado. Achei melhor deixar pra lá. Quando o Ricardo ficava bravo, o jeito era deixar quieto. Ele só se animou de novo, durante a aula de Artes, as duas últimas. Enquanto dona Malu tentava ensinar pra classe pela enésima vez, como se fazia o origami de um cisne, Ricardo tornou a tocar no assunto que eu estava tentando evitar:
- Olha, Marcelão! É hoje ou nunca mais, hein? - Disse, incentivando.
- Tá bom, Ricardo... Tá bom... - Respondi num suspiro, enquanto percebia desanimado, que a minha dobradura parecia tudo, menos um cisne.
O sinal tocou pontualmente às 13h15 e, como era de se esperar, a turma toda fez a maior bagunça pra sair. Estiquei o pescoço tentando ver se ainda pegava a Carina e confirmar com ela a nossa aula particular de hoje à tarde. Ela parecia apressada. Foi pegando fichário, apostilas, estojo, blusa, tudo de qualquer jeito e foi saindo. Só o Ricardo e eu continuamos ali, guardando nossas coisas devagar, sem pressa. Ele estava super empolgado, fazendo mil planos pro sábado à noite:
- Se tudo der certo, a gente podia ir amanhã no Bananarama, né? - Sugeriu. - Já pensou, Marcelão? Eu e a Flávia e você e a Carina? Ia ser bom demais!
- Ou, se tudo der errado, amanhã eu vou estar trancando no meu quarto, chorando e com uma vontade louca de cortar os pulsos! - Comentei deprimido.
- Larga mão, Marcelo! - Censurou Ricardo me dando outro daqueles cascudos super doloridos. - Fica com esse papo de emo, meu! Coisa mais sem noção...
Achei graça. Já estávamos saindo quando dei uma última olhada pra carteira vazia da Carina e notei algo.
- Espera só um pouco, Ricardo... - Disse, largando minhas coisas em cima de uma cadeira e indo até a carteira vazia da Carina. Embaixo da cadeira, num suporte onde se costuma guardar os cadernos e apostilas, havia uma agenda com uma carinha sorridente em alto relevo. Abri a primeira página e vi o nome dela escrito naquela letra redonda e bem feita. Ricardo assim que me viu com a agenda na mão, correu pra mim.
- Caraca, Marcelão! - Disse espantado. - A mina esqueceu a agenda! Vai! - Falou me dando um empurrão. - Abre aí pra gente dar uma espiada!
- Cê tá louco, Ricardo? - Perguntei com espanto. - Cê acha que eu vou ficar fuçando na agenda dela, assim, na cara larga?
- Ah, Marcelo! - Começou Ricardo. - Não sacrifica, meu! Quando que alguém tem uma sorte como a tua? Você sabe o que é isso?
Fiz uma cara debochada de lesado pra ele.
- Hã... uma agenda? - Perguntei numa voz molenga.
- Não, cara! - Começou Ricardo, olhando pra agenda como quem olha um tesouro. - Isso daí, meu, é a resposta pra todas as tuas perguntas! Se ela escreveu alguma coisa de você, com certeza tá aí dentro!
- E você acha que eu vou espionar a vida dela, ô? - Argumentei, embora no fundo no fundo, eu sentia uma vontade louca de fazer justamente o contrário.
- Se você não der uma espiadinha que seja, então você é muito otário, meu! - Disse Ricardo impaciente. - Você não tá arrancando a roupa dela... Você só tá se informando, do que ela gosta... de QUEM ela gosta...
- Hum... não sei não... - Disse confuso.
- Se você acha que não vale a pena, então, paciência... - E terminando de dizer isso, ele pegou suas coisas e foi saindo, me deixando ali, sozinho.
Em meio ao silêncio que pairava por toda a escola, fiquei observando a agenda. Meus dedos formigavam de prazer, como se, ao invés de uma simples agenda, eu estivesse tocando a pele branca e perfumada da Carina. Abri a primeira página e olhei novamente os dados pessoais que ela cuidadosamente preenchera. Idade, tipo sanguíneo, endereço, era alérgica a quê, etc, etc. Tive o ímpeto de passar para a página seguinte. Meu coração batia alucinado, emocionado com aquela experiência quase que, transcendental.
Como se tivesse caído em mim, fechei rapidamente a agenda, peguei minhas coisas e fui saindo.
Não, eu não ia ler a agenda da Carina.
Pelo menos, não ali...
(Continua)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Borboletas no estômago (Parte II)

- Mas por que você não contou tudo pra ela, cara? - Ricardo me olhava pasmo.
- Não deu, cara! Não deu! - Foi a única coisa que me ocorreu dizer. (Na verdade, nem eu acreditava que a minha covardia tivesse justificativa.) - No fundo, no fundo, eu queria ter chegado nela e... Ah, sei lá! Nem sei mais o que eu devia ter feito!
- Marcelo, você tava com ela sozinho em casa, os dois assim, pertinho um do outro, estudando a droga da matemática e não te passou pela cabeça fazer um carinho que fosse nela? Dá licença! - Ricardo parecia mais e mais inconformado.
- Você acha que é fácil, Ricardo? - Tentei argumentar.
- Fácil pode não ser, mas também não é difícil... - Disse Ricardo, dando uma bela dentada na esfiha que havia comprado na cantina. Bebericou um gole de coca-cola e continuou: - Se você tivesse chegado nela, como quem não quer nada... Podia perguntar se ela tava sozinha, se ela tava gostando de alguém... Tipo, papo de amigo, confidência, entendeu?
- Olha bem pra minha cara, Ricardo! - Eu comecei. - Tá escrito na minha testa MASOQUISTA? Tá? E se eu pergunto tudo isso que você falou e ela diz que gosta de outro? Como é que eu ia ficar?
- Ah, pelo menos você desencanava, véi! - Respondeu, dando outra mordida na suculenta esfiha. Filho da mãe, eu naquela angústia toda, pensando na minha falta de coragem em contar pra Carina o que eu sentia e ele nem pra me oferecer uma mordida! Putz, eu tava apaixonado mas também tava com fome! Ele mastigou mais um pouco, pensou mais um tanto e continuou: - Agora, se quer saber, eu acho que se você continuar marcando, ela vai acabar arranjando outro carinha e te deixar chupando o dedo!
- Será? - Perguntei, sentindo o meu estômago revirando, só que dessa vez, de angústia.
- Cê tem alguma dúvida? Você acha que uma menina ajeitada como a Carina, não tem uma porção de neguinho dando em cima? Se você não chegar junto logo, outro vem e crau! - Ricardo fez uma careta e cuspiu uma azeitona longe. - Credo, detesto azeitona!
Dei uma olhada no relógio. Tinha mais dez minutos de intervalo. Seria tempo suficiente pra conseguir falar com a Carina. Ou pelo menos tentar... Abrir o coração ou, chegar junto, como o Ricardo costumava falar. Respirei fundo. Peguei o copo de coca-cola da mão do Ricardo (que naquela altura já estava no segundo salgado e não me ofereceu. Pra variar, né?), tomei um gole grande, que quase me fez engasgar e saí procurando pela Carina.
-Ô, Marcelo! - Gritou Ricardo. - Onde cê vai?
Virei rápido na direção dele, fazendo um gesto com a mão de "Güenta aí, que eu já volto!" Eu sentia uma energia diferente correndo por todo o meu corpo, como se eu estivesse ligado numa tomada de 220 volts. Só de pensar que naquele instante, em qualquer canto da escola, havia um cara disposto a tentar ficar com a Carina, a tentar namorar com ela, me deixava elétrico, furioso e... desesperado, claro! Atravessei o pátio lotado olhando em todos os lugares possíveis e imagináveis onde a Carina poderia estar. Meu coração batia depressa. Olhei o relógio: só mais cinco minutos! Putz! Eu continuava olhando tudo. Afobado, suado, desesperado, como se o destino da humanidade estivesse nas minhas mãos. (Menos, Marcelo!) Mas era o meu futuro que estava em jogo, né? Se alguma coisa desse errado, teria as mesmas proporções de uma hecatombe nuclear! Já estava quase a ponto de berrar o nome dela, quando então...
Ali estava ela... Em meio a tantas garotas, a número um. A única. A garota que era a razão pela qual eu gostava tanto de ir pra escola ultimamente... Senti um imenso alívio ao vê-la conversando com as outras garotas da nossa classe. Ela ria gostoso e parecia que o sorriso dela, refletia a luz do sol e iluminava a tudo e a todos. Se ela tivesse sorrido antes, eu teria encontrado aquele sorriso em meio a bilhões e bilhões de outros sorrisos!
Aquela sensação de eletricidade, foi rapidamente substituída por um formigamento gostoso, como se os meus poros pipocassem de paixão. Senti as pernas e os braços moles, como se pudesse levitar a qualquer momento. Dizem que, quando a gente ama, a sensação mais marcante que se tem, é a de que o nosso estômago parece ficar cheio de borboletas, que ficam ali, confinadas, voando, voando... Bom, se aquilo era verdade, se as borboletas no meu estômago escapassem naquele instante, elas iriam colorir a escola inteira!
Carina virou o rosto e seu olhar encontrou ou meu. Esperava que ela abrisse o sorriso mais lindo do mundo, mas ela me olhou ressabiada. Com certa desconfiança. Aquilo me partiu em mil pedaços. As amigas dela, vendo a expressão fechada em seu rosto, olharam também na minha direção. Uma delas cochichou alguma coisa pra Carina, que continuava me encarando com certo estranhamento. Fiz um gesto de "posso falar com você?". As meninas continuaram me olhando, como se eu fosse a coisa mais estranha na face da Terra. Carina cochichou alguma coisa pra elas e veio ao meu encontro. Veio depressa, como se não estivesse muito satisfeita em interromper a conversa com as amigas. A sensação de sonho, de leveza e até mesmo todas as borboletas que eu carregava no meu estômago, pareceram desaparecer por completo.
- Fala, Marcelo... - Disse ela, com secura.
Peraí! "Fala, Marcelo..." ? E aquela abreviação que eu tanto gostava de ouvir? (Por favor, diz! Diz que eu quero ouvir!) Tentei não me abalar. Primeiro, porque ela não parecia disposta a ficar muito tempo ali, me ouvindo. E segundo, porque o tempo de que eu dispunha era curtíssimo.
- E então, Marcelo? O que você quer falar comigo? - Perguntou séria.
- Você... - (Não gagueja, mané! Não gagueja!) - ...você deve tá me achando um tremendo otário, né?
- Por quê? - A pergunta dela soou sem nenhuma emoção. Eu não sentia mais doçura na voz dela. Aquela doçura que sempre me encantou...
- Ah, eu me comportei feito um babaca ontem... Você tentando falar comigo, e eu viajando, pensando em outras coisas...
- Pois é... - Concordou ela, cada vez mais seca. - Nem sei o que eu fui fazer lá na tua casa... Eu ficava falando, você fingia que escutava, eu achava que tava conseguindo te ensinar aquela droga de equação... Realmente, parece que ontem a gente não tava na mesma sintonia, né?
- É, você tem razão... - Concordei, ficando vermelho. - Você tem todos os motivos do mundo pra me achar um lesado, um tonto mas eu só queria que você entendesse... - Senti que minha garganta queria fechar.
- Entender o quê? - Perguntou e, eu notei que a sua testa franziu.
- Se eu tava daquele jeito, é porque tinha uma razão... - Minha garganta se apertava gradativamente, como se a mão invisível de alguém tentasse me estrangular. - E eu queria que você entendesse que...
- Você tá sendo repetitivo, Marcelo. Se você não disser, como eu vou entender? - Interrompeu com certa irritação.
- É, cê tá certa... - Concordei, ficando ainda mais vermelho. - Eu queria que você soubesse que eu só...
UÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓÓMMMMMMMM!!!!!!!!!!!!!!!
O sinal anunciando o final do intervalo tocou estridente por toda a escola, fazendo os outros alunos ficarem alvoroçados e Carina super impaciente.
- Vai, fala logo, Marcelo! Eu preciso terminar de contar um negócio pras minhas amigas! - Apressou.
Vai, Marcelo! Coragem, cara! Diz pra ela que você não pensa em mais nada a não ser nela! Enchi os pulmões com todo o ar possível, tentando me livrar da mão invisível que continuava me sufocando e, quando fui dizer tudo, meu cérebro pareceu me trair e, a frase que saiu, foi a mais imbecil do mundo:
- Você pode ir lá em casa de novo? Eu preciso de uma ajuda com a matéria de química...
Socorro! Química?! Eu quis gritar, eu quis ter uma perna elástica pra dar um grande chute no meu saco e ficar rolando no chão, de tanta dor! E o "Eu te amo"? Onde você o enfiou? Não, não quero nem saber!
Carina me olhou de esguelha, como se me examinasse. Por fim, perguntou, um tanto pasma:
- Era só isso?
- É... - Bufei, com ódio de mim mesmo. - E vai ser bom, porque a gente pode conversar com mais calma...
- Você não merece, mas eu vou fazer uma nova tentativa... - E quando ela terminou de dizer isso, um sorriso gostoso se iluminou em seu rosto. Como se ela dissesse que, apesar de tudo, de eu ser um total e completo imbecil, ela não conseguia sentir raiva de mim. Mas eu tava morrendo de ódio de mim! Da minha total falta de coragem! Burro! - Então tá combinado... Hoje à tarde na tua casa. Agora deixa eu ir... Daqui a pouco a gente se fala na classe.
Ela começou a se afastar e, quando o segundo sinal tocou e a algazarra dos outros alunos ficou ainda maior, juntei todas as forças que tinha e berrei, louco:
- EU AMO VOCÊ, CARINA!!!!!
Carina parou por um instante. Senti como se um raio tivesse me atingido em cheio. Recuei, apavorado, gelado, abobado e quase mijado e cagado! "Será que ela ouviu, meu Deus? Tô fu...!" Pensei em pânico. Carina se virou devagar e me encarou séria. Mesmo com toda aquela algazarra, eu consegui ouvi-la perfeitamente:
- O que foi que você disse?
Dei um suspiro aliviado. Não, ela não ouviu... Estava salvo. Pelo menos por enquanto. Achei que ela fosse virar as costas e ir embora, mas ela tornou a perguntar, me deixando meio sem saída:
- O que foi que você disse, Marcelo?
Pensei rápido:
- Eu disse que mais tarde a gente se vê...
- Ah, tá... - Ela pareceu satisfeita com a minha resposta.
"Idiota!" Pensei, já imaginando o quanto Ricardo ia me pilhar quando me encontrasse. Desanimado, fui deixando o pátio já quase vazio, enquanto via Carina ao longe com suas amigas. As borboletas no meu estômago pareceram se encolher de tanta decepção.
Realmente, eu era um covarde de pai e mãe!
(Continua)

Borboletas no estômago

- Ah, por isso o resultado não bate, Marcelo... Você se embananou todo nessa parte da equação. - Disse ela achando graça, enquanto eu me sentia mais e mais perdido. Não pela dificuldade da maldita equação. Mas perdido naquele jeito dela. Enquanto ela puxava o meu caderno e começava a apagar a parte que eu havia errado, continuei olhando-a, como que hipnotizado.
Caraca, como pode? A gente cresceu praticamente junto, morando no mesmo prédio, participando das mesmas brincadeiras, aprontando uma atrás da outra, atazanando a vida do seu Humberto, o zelador. Indo pra escola junto, às vezes almoçando um na casa do outro... Estudando na mesma classe! Desde que eu me entendia por gente, a Carina tava lá. Eu tinha por mim que, talvez até a mesma mamadeira a gente dividiu! Então por quê? Por quê, meu Deus?
- Marcelo! - Chamou insistente.
- Hã? - Perguntei, como se tivesse levado uma descarga elétrica. Será que ela havia percebido que eu tava encarando? Que, por mais que eu tentasse, não conseguia deixar de tirar os olhos dela?
- Tá dormindo, ou? - Perguntou segurando o riso.
- Ah... eu... - (Droga! Não gagueja, mané!) - Desculpa, Carina... Acho que eu desliguei...
- Total! - Concordou ela, rindo. Aquele riso limpo, branco, iluminado... - Mas também ninguém merece, né? Uma tarde linda lá fora e a gente aqui, moscando com a cara enfiada num livro de matemática! Tanta coisa melhor pra fazer...
"Com certeza... Agora mesmo estou pensando numa outra coisa que seria ótima..."
Putz! Eu não acredito que tava pensando naquilo! Sacudi na hora a cabeça, pra espantar aquele e qualquer outro pensamento idiota que pudesse me ocorrer. Como é que eu podia ser tão imbecil? Não conseguia nem conversar direito com ela de uns tempos pra cá, e ficava pensando em levá-la pra cama? Só podia ser coisa da minha cabeça anormalmente grande e totalmente vazia!
- Empatei a tua vida, né, Carina? - Perguntei dando um suspiro.
- Que nada, Celo... - Nossa! Ela sempre me chamou de Celo e eu sempre achei aquela abreviação super normal. Mas de uns tempos pra cá, quando ela me chamava daquele jeito, meu coração parecia despencar até o tornozelo pra logo em seguida, subir de volta ao peito como um foguete supersônico! Fiquei vendo os seus lábios se movendo, falando alguma coisa que, não sei porque, não conseguia entender. Como era linda! Aquele cabelo cacheado e muito ruivo, os olhos amendoados e a pele clara coberta por aquele vestido florido... Ela parecia uma combinação perfeita de música e poesia. Seus olhos se desviaram dos meus por um momento e eu me senti perdido, solitário, tentando sufocar um grito. Era como se nada mais tivesse importância na vida, a não ser aqueles olhos que eu comecei a amar a tão pouco tempo. Carina continuava falando, articulando a boca, rodando o lápis entre os dedos. Eu parecia um surdo. Um surdo completamente apaixonado e fascinado! Quando ela bateu de leve a sua mão na minha perna, foi como se eu tivesse sido acordado com o estrondo de uma explosão.
- Você ouviu, Celo? - Perguntou ela, me olhando séria.
Respirei fundo. Mesmo não querendo, desviei os meus olhos dos seus e me fixei na página do meu caderno. Vi aquela maldita equação incompleta e não pude deixar de me sentir mal. E se ela soubesse a verdade? E se eu contasse pra ela que, era inútil ficar me explicando aquela equação, porque eu simplesmente, era capaz de resolvê-la até de olhos fechados? Que, na verdade, eu tinha inventado que tava mal em matemática, só para ela ficar ali, comigo? Qual seria a reação dela? Ia me xingar, me mandar pra puta que pariu, ou simplesmente ia virar a cara e nunca mais falar comigo?
Pra falar a verdade, acho que eu nunca ia ficar sabendo... Porque eu não ia ter coragem de contar. Eu a queria ali, do meu lado. Não só uma tarde, mas durante todas as tardes que a gente pudesse viver junto. Eu ia ter que continuar mentindo e teria também que torcer pra que ela nunca desconfiasse de nada. Seria doído demais não ser correspondido, descobrir que ela não sentia nada por mim, além de amizade. Mas ia doer mais ainda, se eu perdesse a amizade dela. Tentando sufocar uma vontade imensa de chorar e, ainda olhando fixamente pra folha de caderno, falei sem encará-la:
- Acho que por hoje chega, Carina... Essa equação é difícil demais pra mim!
Carina pareceu surpresa. Ela pegou o lápis que segurava e o guardou no seu estojo, fechou seu caderno e o livro de matemática e se levantou.
- Então, tá... - Disse, tentando não se mostrar decepcionada. - Quando você preferir ficar mais no mundo real do que no mundo da lua, a gente continua...
E, sem dizer tchau, virou as costas e foi embora. Sozinho, ali na sala, eu tombei a cabeça sobre o caderno e deixei as lágrimas lavarem aquele monte de números que eu conhecia tão bem.
Definitivamente, dizer "Eu te amo", era mais assustador que a mais difícil das equações.
(Continua)