sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Borboletas no estômago (Parte V)

Se alguém me perguntasse como eu tinha conseguido chegar até o meu quarto, eu não saberia responder com exatidão. A única coisa que eu conseguia lembrar, ainda assim porque ficava martelando insistentemente na minha cabeça - e fazia meu peito latejar como nunca - era a imagem daquele coração grande e cafona desenhado na maldita página daquela maldita agenda. De resto, não sabia de mais nada. Não tinha a menor ideia de onde eu havia tirado forças para desgrudar o rosto do chão frio da escadaria, me levantar e voltar pra casa. Tudo parecia um imenso borrão cinza, onde eu era incapaz de distinguir qualquer outra coisa que não fosse minha própria dor.
Acho que é assim que funciona, né? Quando se chora e se sofre a ponto de querer deixar de existir, o corpo liga o piloto automático. Por alguns instantes - ou até mesmo por semanas e meses - você passa a fazer as coisas e nem percebe que está fazendo. Você pode até caminhar sobre espinhos; seus pés vão sangrar pra caramba, mas você continua caminhando porque, no final das contas, é assim que tem que ser. Acho que eu deveria agir dessa forma dali em diante. Caminhar por entre os espinhos da minha vidinha patética, sangrando pra caramba, mas ainda assim, seguindo...
Mas como? Como eu faço isso sem a Carina? Como vai ser levantar todas as manhãs, ir pra escola, encontrar com ela e fingir que eu continuo o mesmo cara de sempre, mesmo sabendo que por dentro eu me sinto machucado? Vai ser foda. Muito foda mesmo...
Naquele momento, abraçado ao travesseiro, comecei a pensar seriamente na possibilidade de pedir pros meus pais me trocarem de escola. Sei lá. Podia falar que tava achando tudo uma merda, que os professores não tavam ensinando droga nenhuma... (Não... Eles não têm culpa da minha dor de cotovelo.) Também seria uma boa se a gente mudasse do prédio... Esse argumento seria infalível! Eu podia dramatizar bastante, dizendo que quase morri soterrado por uma mulher imensa de gorda e que duas meninas histéricas quase me deixaram surdo de tanto gritar , dentro de um elevador caindo de velho... (Mas será que se a gente mudar, a dor não vai seguir junto comigo? E eu não vou acabar sentindo saudades do lugar onde passei praticamente a minha vida inteira? Onde eu descobri o quanto o amor é bom e ruim pela primeira vez?) Sei lá... A única coisa que eu tinha realmente certeza naquele instante, é que tão cedo eu não queria ver a Carina na minha frente. Ver aqueles olhos lindos, aquele cabelo todo cacheadinho, cheirando a frutas vermelhas, aquele rosto perfeito e radiante, ia me doer mais que tudo no mundo... E quando eu pensava que ela era inteira, de corpo e alma só do Cristiano Labate, eu sentia uma raiva tão grande, que eu bem seria capaz de enfiar um murro no meio da cara daquele babaca! Isso sim seria uma boa! Deixar aquele imbecil sem os dentes da frente. Queria ver se alguma menina na escola ia olhar pra ele! Era até capaz dos outros meninos me carregarem nos braços, como um grande herói, um salvador da pátria! Eles mandariam então, fazer uma estátua bem grande minha e colocar uma placa com os dizeres: MARCELO: ESSE É O CARA!!!!
Mas é claro que eu não ia fazer nada disso. Até porque o Cristiano Labate era faixa preta no caratê e fera em jiu-jitsu. Já imaginaram? Eu chego no maior apetite de arrebentar o cara de pancada e quem acaba arrebentado sou eu? Não, deixa quieto. Melhor ficar arrebentado só por dentro mesmo... O jeito era ficar ali, quieto no meu canto. Tentando afastar a Carina da minha cabeça e do meu coração. E não pensar mais nela. Nunca mais...
- Marcelo? - Ouvi a Lurdinha me chamando. Ela torceu a maçaneta, mas a porta estava trancada. (E eu também não me lembrava de tê-la trancado.) Deu três batidinhas e chamou de novo. - Marcelo?
- Que é que foi, Lurdinha? - Perguntei, tentando disfarçar a voz. A vontade de chorar começava a estrangular minha garganta e meus olhos queriam arder. E eu queria me entregar a tudo aquilo. Queria chorar sozinho, sofrer sozinho, gritar sozinho... Com muito custo, pedi: - Me deixa quieto, por favor...
- Sua mãe chegou... Ela pediu pra você dar um pulo lá na sala... - Avisou sem levar em consideração o meu pedido.
- Diz pra ela me deixar em paz, Lurdinha... - Respondi, agora com a voz totalmente deformada. Não sei se pelo choro ou pelo grito que tentei dar. - Fala pra ela que depois eu vou... Tô ocupado agora!
Ouvi a Lurdinha se afastando, pelo barulhinho irritante que os chinelos dela faziam no piso. Me agarrei com mais força ao travesseiro. Eu sabia que minha mãe não ia deixar barato. Se tinha uma coisa que ela não sabia me dar era sossego. Depois que eu entrei na adolescência então, parecia que um alarme soava dentro dela dia e noite. Como se ter um adolescente em casa, fosse tão perigoso quanto armazenar material radioativo numa vasilha de plástico! Ninguém merece! E eu, muito menos! Eu sabia que era uma forma dela demonstrar preocupação (até demais, por sinal!), porque na época dela não tinha a metade das doideiras que tem hoje em dia, etc e etc... Enfim, aquelas coisas nada a ver que ela adorava mencionar quando queria me dar um esporro ou uma lição de moral qualquer. Mas eu não tava afim... Não queria ouvir nada do que ela tinha pra perguntar ou dizer. Só queria ficar quieto com a minha dor de cotovelo.
Mas como eu disse, ela não ia deixar barato. Fechei os olhos e comecei a contar mentalmente:
"Um... dois... três... qua..."
Nem deu tempo de chegar no número quatro. Ouvi as batidas fortes, enérgicas na porta.
- Marcelo? - Ela chamou.
- Morreu! - Respondi já começando a ficar de mau-humor.
- Abre essa porta! - Falou séria.
- Tô pelado! - Retruquei com deboche.
- Então se veste! - Mandou.
- Tô com preguiça! - Respondi rápido. Me encolhi ainda mais na cama e cobri a cabeça com o travesseiro pra abafar as outras duzentas batidas que ela deu na porta. Putz, será que era difícil entender que eu não tava com saco pra conversinha mole? Na certa era pra me cobrar se eu liguei no ortodontista marcando hora. (Bosta de aparelho! Só serviu pra me deixar ainda mais esquesito, ainda mais feio!) Que saco! Que merda! Será que ela não podia me deixar em paz?
"Não... É claro que não..."
Pois eu mal acabara de pensar isso, ouvi o barulho metálico vindo do outro lado. Um giro, depois outro. Logo em seguida, via a maçaneta sendo torcida e záz! Minha mãe entrou no quarto sem a menor cerimônia. Aquilo fez o meu sangue ferver! Minha vontade foi de mandar ela ir cagar! Sentei na cama e com a maior cara feia do mundo, fiz questão de reclamar:
- Puta merda, mãe! Que falta de respeito, hein? Entrando assim, no quarto dos outros!
- Eu tenho uma cópia da chave, esqueceu? - Respondeu com uma das mãos na cintura e a cópia da chave do meu quarto na outra.
- É... - Respondi irritado. - Esqueci que nessa casa a gente não tem privacidade nem no próprio quarto!
- Fizesse por merecer, mocinho! - Respondeu sem se abalar. - E depois, pra que ficar a tarde toda trancado no quarto? Vai fazer alguma coisa, menino!
- Eu tava fazendo, mãe... - Respondi cada vez com menos paciência. - Eu tava aqui, deitado, de boa!
- Deitado, Marcelo? - Falou impaciente. - Parece até que tá com anemia ou verme! Só pensa em dormir!
- Tem dó, né, mãe! - Bufei. - O que eu faço ou deixo de fazer no meu quarto, é problema meu! - Tomei um fôlego e continuei sem dó: - Engraçado isso, né? Quando você se tranca no teu quarto sozinha ou com o meu pai, eu não vou lá te encher o saco! Então por que você sente prazer em encher o meu?
Minha mãe prendeu a respiração. O meu argumento pareceu ter caído sobre ela como o peso de duas toneladas. Por alguns instantes eu pensei que ela fosse partir pra cima de mim e me dar uma tremenda surra. Pra falar a verdade, eu bem que merecia. Nunca tinha batido assim, de frente com ela. Depois de alguns segundos, que pra mim pareceram uma vida, ela finalmente disse:
- Desculpa, filho... Eu só fiquei preocupada...
- Preocupada com o quê? - Perguntei com uma pontinha de mal-humor e outra de receio em desafiá-la novamente. - Se eu tava aqui usando droga, é isso?
Minha mãe me encarou com aquele olhar que mesclava espanto, indignação e uma certa mágoa e continuou:
- A Lurdinha me ligou. Ela disse que você voltou pra casa com um jeito de quem tinha chorado, com a roupa amassada... Aí eu resolvi dar uma escapada do serviço... Pra ver se tava tudo bem com você...
Aquilo me pesou no peito de uma forma insuportável. Senti tanto remorso, tanta vergonha! Como eu tinha sido estúpido, cara! Tava tão preocupado com a minha dor, com a minha tristeza, que não me importei em dar uma patada na pessoa que mais se importava comigo... Tá certo que ela às vezes passava da conta, que era superprotetora demais, mas putz, ela não merecia ouvir aquilo! Olhei mais uma vez pra minha mãe, que continuava me observando com aquele olhar sentido e ao mesmo tempo cheio de amor e vontade de ajudar. Tentei balbuciar um "desculpa, mãe...", mas senti que as lágrimas começavam a escorrer sem que eu pudesse controlar. Abracei minhas pernas, escondi a cabeça envergonhado e chorei tudo o que eu ainda teria pra chorar ao longo daquela tarde. Minha mãe sentou na beirada da cama, me abraçou forte e ficou acariciando os meus cabelos. Quis falar alguma coisa, mas toda vez que tentava, soluçava a ponto de achar que fosse morrer sufocado. Quando ela finalmente percebeu que eu já estava ficando mais calmo, segurou meu rosto entre as mãos e, enxugando as minhas lágrimas, perguntou:
- E agora? Você vai ou não vai me contar o que tá acontecendo?
- Deixa quieto, mãe... - Respondi soluçando um pouco e me afastando dela.
- Deixa quieto, coisa nenhuma! - Disse. - Você nunca foi de chorar assim, filho... Todo metido a durão, cheio de si... Cheio de marra, como você e os seus amigos costumam falar... - Ela deu uma risadinha rápida. Depois de um rápido silêncio, ela perguntou, como se tivesse certeza: - É o coração, né? -
Dei um suspiro sentido. Fiz que sim com a cabeça.
- Foi alguém que machucou? - Quis saber, dando um sorriso doce e cheio de cumplicidade.
- Não foi, não, mãe... - Respondi mexendo displicentemente no cadarço do meu tênis. E antes que meus olhos começassem a arder de novo, continuei: - Eu mesmo é que machuquei ele. Bancando o idiota, o iludido, o babaca... Também, né? Que menina ia ser doida de querer alguma coisa comigo?
- Não fala assim, filho... - Pediu. - Você é um menino tão bacana, tão cheio de qualidades...
- ...tão sem graça! - Completei com certa tristeza.
- Eu não acho! - Disse ela com carinho.
- Porque você é minha mãe, né? - Respondi num muxoxo.
- E quer saber? - Falou num sorriso maroto. - Tenho certeza que a Carina também não acha...
Foi como se eu tivesse recebido uma descarga elétrica violenta.
- A Ca... a Carina? - Gaguejei, sentindo as bochechas corarem. - Que é isso, mãe! Nada a ver... - Tentei disfarçar, mas acho que a minha voz trêmula e meus olhos arregalados não ajudaram a convencê-la. Antes que eu tentasse lançar mão de outro argumento, minha mãe disse sorrindo:
- Marcelo, Marcelo... Jura que você achava que eu não tinha percebido nada?
- Não, mãe... é que... - Tentei articular alguma coisa, mas ela me interrompeu:
- Filho, você se esquece que eu vou a todas as reuniões na tua escola? Que eu sei de cada nota que você tira? Então! Quando você começou com essa história de pedir pra Carina te ajudar, te dar uma aula particular aqui, outra ali... Hum! Eu logo percebi que tinha alguma outra coisa por trás disso tudo... - Ela deu uma piscadinha pra mim e eu senti vontade de sumir, de tanta vergonha! Ela continuou: - Você é tão bom aluno, que fica difícil de acreditar que você esteja com dificuldade em alguma matéria, filho! Eu não sei como a Carina não percebeu isso também! - Disse achando graça.
- Cara, que mico! - Disse, ficando mais e mais vermelho.
- Mico, por quê? - Perguntou achando graça da minha vergonha. - Só porque você gosta dela e eu percebi? - E antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela continuou, agora num tom mais discontraído, quase brincalhão: - Eu boto a maior fé nesse namoro!
- Que namoro, o quê, mãe! - Disse com azedume. - A Carina não quer e nunca vai querer nada comigo! Quem tem como namorado um cara como o Cristiano Labate não precisa dum cara esquisito como eu!
- Foi ela quem te disse isso? - Perguntou franzindo a testa.
- Não. Eu sei que é assim e pra mim já é o bastante! - Respondi num suspiro.
- Se não foi ela quem te disse isso, como você pode ter tanta certeza assim? - Quis saber.
Respirei fundo, como se buscasse uma força sei lá de onde e, levantando da cama, abri a gaveta da minha escrivaninha e tirei lá de dentro, a maldita agenda. Folheei rápido página por página, até que finalmente encontrei aquele maldito coração desenhado. Estiquei a agenda pra minha mãe, que olhou o desenho do coração, mas não entendeu.
- Isso aí significa exatamento o quê, Marcelo?
- Essa é a agenda da Carina, mãe... - Respondi.
- Então foi você que pegou a agenda dela? Marcelo, não vai me dizer que você ficou... - E antes que ela pudesse continuar e começar uma nova ladainha, fui logo falando:
- Não, mãe... - Disse. - Se bem que vontade não me faltou, mas aí eu pensei melhor e percebi que, antes de qualquer coisa, a Carina é minha amiga, né?
- Que bom que você tenha pensado assim, filho... - Disse minha mãe, com uma pontinha de satisfação.
- Mas as coisas não saíram como eu esperava... - Continuei.
- Por quê? - Perguntou interessada.
Fiquei por alguns instantes em silêncio, mordendo os lábios e pensando em como contaria tudo o que se passara naquela tarde sem correr o risco de chorar novamente. Respirei fundo mais uma vez e comecei a contar tudo pra minha mãe. Desde o instante em que eu decidira devolver a agenda pra Carina, até o momento em que eu descobri aquele coração ridículo desenhado em uma das páginas. Quando terminei, ela me encarou séria e perguntou:
- Então é só isso?
- Só isso, mãe? - Perguntei incrédulo. - Você acha pouco? Como eu posso ter alguma esperança de conquistar a Carina se ela gosta do Cristiano?
- Por um acaso o nome dele está escrito aí?
- Não, mas a inicial do nome dele tá! A não ser que a Carina esteja ficando com outro cara cujo nome comece com a letra C! - Argumentei. E depois, com pesar na voz, continuei: - Mas é o Cristiano sim, mãe... Eu tenho certeza! O Ricardo me falou isso na aula hoje...
- Talvez ela tenha feito esse desenho e escrito essas iniciais há muito tempo, Marcelo... De repente, esse tal Cristiano nem faça mais parte do pensamento dela... - Arriscou minha mãe, tentando me animar. Mas eu não estava nem um pouco esperançoso.
- Se ele não faz, mãe, com toda certeza é outro cara que faz... - Disse suspirando. - A Carina me vê só como um bom amigo... Só isso...
- E por que você não fala sobre isso com ela? - Sugeriu.
- Tá doida, mãe? Eu vou dar esse mole pra quê? - Perguntei, ficando agoniado só de pensar nessa possibilidade.
- Pois eu acho que você deveria conversar com ela sim, Marcelo... - Incentivou minha mãe.
- E tomar um fora, é isso? - Perguntei contrariado.
- Mas pelo menos você vai abrir o coração, filho... Vai ter a oportunidade de falar sobre tudo o que você sente por ela...
- Como se fosse fácil! - Bufei.
- Não é fácil, Marcelo... Mas você também não acha que é difícil ficar sufocando tudo o que você sente, por causa de um medo bobo?
- Medo bobo, mãe? E se eu perder a Carina pra sempre? - Perguntei em agonia.
- Medo bobo, sim! Porque você prefere ficar aqui, trancado nesse quarto chorando, curtindo dor de cotovelo, do que encarar a verdade de frente. É um risco, eu sei... Ninguém gosta de tomar um fora. Mas, se abrindo com ela, você pelo menos vai tirar essa espada de cima da sua cabeça. Se ela te aceitar, ótimo! Já disse que dou a maior força pra esse namoro...
- E se ela não me aceitar, mãe? - Interrompi, já com os olhos ardendo.
- Se ela não te aceitar, Marcelo... - Ela parou de falar, como se quisesse escolher as palavras certas. Fez então um carinho na minha perna e continuou: - Por mais que doa, por mais que você chore, vai ser melhor do que você continuar curtindo essa paixão platônica, que tá te fazendo sofrer tanto... Você vai poder continuar seguindo o seu caminho, a sua vida... E quando a dor passar, você vai lembrar disso com uma certa saudade... E é até capaz de se achar ridículo de ter sofrido tanto! Aí você vai perceber que a vida continua e a gente tem que continuar caminhando...
- É... - Considerei franzindo a testa.
- Mas eu quero que você saiba de uma coisa, viu? - Falou com convicção. - O que quer que aconteça, você ficando com ela ou não, lembra sempre que eu vou estar aqui, tá? Pra te consolar, pra te orientar, ou até mesmo pra te abraçar e ficar do seu lado, quieta...
- Valeu, mãe... - Agradeci me sentindo mais leve. - E desculpa pela patada, viu? Não queria ter falado aquilo pra você...
- Eu sei, filho... Agora vem cá, vem... - Pediu abrindo bem os braços. Ela me abraçou tão forte, que o medo, a insegurança, o desejo de rejeição foram embora por completo. Senti que poderiamos ficar ali, abraçados o resto do dia que ela não iria se importar. Mas a realidade parecia querer me chamar para enfrentá-la... Ouvimos três batidinhas na porta.
- Dá licença?
- Entra, Lurdinha... - Pediu minha mãe.
Lurdinha foi entrando meio sem jeito, como que se ressentindo por interromper alguma coisa.
- Marcelo, a Carina tá lá na sala.
Minha mãe trocou um rápido olhar comigo. Um olhar que me trazia coragem, certeza e convicção.
- Fala pra ela que eu já vou, Lurdinha. Por favor...
Lurdinha saiu do quarto. Minha mãe segurou meu rosto entre as mãos e disse mais uma vez:
- Lembra que eu tô aqui, viu? Pro que der e vier...
- Tá bom, mãe... - Respondi confiante.
- Agora deixa eu voltar pro trabalho, que tem um cliente me esperando... - Ela se levantou depressa e foi saindo. Quando já estava na porta, ela se virou, retirou do bolso a cópia da chave do meu quarto e jogou pra mim. - Toma!
- Ué! - Estranhei pegando a chave. - Mas por quê?
- Você cresceu, filho... - Respondeu. - E eu tenho que me acostumar com isso, não é mesmo? Beijinho e coragem, hein?
Ela saiu, encostando a porta novamente. Fiquei ainda alguns minutos sentado na cama, observando a agenda da Carina bem perto de mim. Não, eu não estava com vontade de ler nada que estivesse ali dentro. Mas depois daquela conversa que minha mãe e eu tivemos, tive a certeza de que, por mais difícil que fosse falar dos meus sentimentos, por mais difícil que fosse me abrir de forma tão completa pra uma garota, era muito mais difícil - e com certeza ridículo - continuar agindo feito um babaca, sofrendo tanto por causa daquelas iniciais estampadas numa das páginas daquela agenda, fingindo ter dificuldades em matemática ou química pra poder passar alguns momentos na companhia dela, enfim, sendo um completo idiota por ficar me alimentando de meias-verdades e certezas que poderiam ser infundadas. Não... Se eu realmente amava a Carina, como o meu coração insistia em afirmar, eu teria de fazer alguma coisa. Mesmo que me causasse dor a recusa dela, mesmo que o fora que eu fatalmente correria o risco de levar, me fizesse chorar por alguns dias, semanas e até - quem sabe? - meses. Melhor correr o risco de tê-la por inteiro do que só pela metade, me tratando só como um bom amigo.
Aquele raciocínio firme, decidido e seguro, pareceu aquietar meu coração. Era como se eu tivesse enxergado pela primeira vez em muito tempo, um raio de sol, de esperança, em meio ao nevoeiro da minha incerteza, da minha hesitação. Não dava mais pra esperar.
"Coragem, Marcelo!!!" Ecoava dentro de mim. Levantei da cama, coloquei a agenda da Carina no bolso do meu bermudão e dei um pulo no banheiro. Lavei bem meu rosto, como se quisesse apagar as marcas daquele Marcelo arrasado de alguns instantes atrás. Por alguns segundos, fiquei me observando no espelho. O rosto marcado por algumas espinhas, os cabelos em desalinho, o aparelho ortodôntico, os olhos negros. Olhos de um cara decidido, como nunca havia sido antes. Em meio àquele turbilhão de coisas que rolaram ao longo do dia, não pude deixar de me considerar um sobrevivente. Um cara que caiu e que, agora com muita vontade, começava a se levantar. Se nesse percurso eu caísse novamente, tudo bem. O que eu não poderia perder de jeito algum, era a vontade de levantar e começar de novo. Senti aquele grito de "Coragem, Marcelo!!!" reboando por cada centímetro do meu corpo e, dando uma última olhada pr'aquele novo cara no espelho, virei as costas e fui encontrar a menina que eu tanto amava.
(Continua)

terça-feira, 23 de março de 2010

Borboletas no estômago (Parte IV)

O caminho de volta pra casa me pareceu uma eternidade. Eu morava a poucas quadras da escola, dava perfeitamente para ir a pé, mas naquele instante, a impressão que eu tinha era de que precisaria atravessar a cidade inteira até chegar ao meu destino final. Cara, como eu queria já estar no meu quarto, trancado, apertando contra o peito a agenda da Carina, sentir a textura das páginas onde ela escrevia as coisas que lhe passavam pela cabeça! Eu suava frio e meu corpo todo tremia. Medo, excitação, curiosidade, desejo... Era uma mistura de sensações tão forte, que eu parecia embriagado. Mas também tinha aquela impressão de que todos na rua voltavam os olhares pra mim, como se me condenassem, como se me olhassem com desconfiança e reprovação. Eu me senti como um criminoso que acabara de fugir da prisão, ou um ladrão que acabara de assaltar um banco. Me agarrei ainda mais à minha mochila e apertei o passo mais um pouco, mesmo com as panturrilhas ferroando horrores. Atravessei as ruas seguintes sem me preocupar muito se vinha carro ou não, fingi que não ouvi quando a Laura, uma colega de classe, me chamou de dentro da Salgaderia Glutão, dei vários encontrões com o povo na rua, sem me preocupar sequer em pedir desculpas, enfim... Seguia sempre depressa e aos tropeções, buscando minha casa como quem busca o mais seguro dos refúgios. Meu coração se encheu de alívio quando avistei na esquina seguinte o começo da praça Luís de Camões. Agora só precisava atravessá-la! Aquela sensação de proximidade, me deixou ainda mais excitado. Assim que atravessei a rua até a calçada da praça, comecei a correr como um doido. Pra motivar minhas panturrilhas doloridas, fiquei imaginando enquanto corria, que estava sendo perseguido por algum valentão da escola ou ainda melhor: que a "Legião das Meninas Perseguidoras de Ladrão de Agendas" vinha no meu encalço, com paus, pedras e correntes e tinham ganas de me dar a maior surra da história. Me senti ridículo por pensar em tudo aquilo, mas me ajudou a atravessar a praça em pouquíssimos minutos. Ainda correndo, desci a Bernardino de Campos, até que, (FINALMENTE!), cheguei ao prédio onde morava.

* * *
- Nossa, que pressa é essa? - Ouvi minha mãe perguntar assim que entrei em casa batendo a porta.
- Ah! Oi, mãe... - Respondi esbaforido. Minha mãe começava a colocar comida no prato do Thiago, meu irmão caçula. O cheiro da comida era irresistível, mas a urgência em bisbilhotar a agenda da Carina era muito mais importante do que a fome que me roía o estômago.
- Não vai almoçar, não? A Lurdinha fez berinjela à parmeggiana...
- Eca! Detesto berinjela! - Disse, disfarçando com uma cara de nojo. E fui tomando o rumo do meu quarto, mas minha mãe pareceu adivinhar.
- Espera aí, Marcelo! - Disse, levantando da mesa. Ela foi chegando perto de mim, me olhou de alto a baixo e com as mãos na cintura. Talvez achasse estranho eu estar todo suado e ofegante daquele jeito. Sem pestanejar então, fez a pergunta: - Tá acontecendo alguma coisa?
- Acont... - Não continuei. Ao invés disso, tentei disfarçar. - Eu só tô sem fome, mãe... Só isso...
E quando eu ia tentar - mais uma vez - tomar o rumo do meu quarto, ela fez uma nova pergunta. Dessa vez, mais séria e incisiva.
- Você não tá usando droga não, né mocinho? - E ergueu a sobrancelha, desconfiadíssima. Achei graça, mas sufoquei o riso.
- Droga, mãe? Viajou, é?
- Sei lá... Você anda tão esquisito ultimamente... - Considerou. - Meio chapado, de olhos esbugalhados... Até o seu pai já notou...
Sufoquei novamente o riso. Chapado, olhos esbugalhados... Ai, ai... Se havia uma droga, um vício na minha vida, naquele momento, seu nome era Carina. Nada mais parecia importar pra mim, mas ao mesmo tempo, eu sentia uma vontade ainda maior em viver, em ser feliz, em abraçar o mundo! Se aquilo era uma droga, então eu queria permanecer viciado! Resolvi deixá-la tranquila:
- Tem dó, né, mãe? - Disse. - Eu tenho um trabalho de química pra fazer que é foda pra caramba e se eu não começar logo, já viu, né? - E, antes que minha mãe pudesse parecer satisfeita com o meu argumento, antes que ela pudesse fazer uma nova pergunta nada a ver, tratei de tomar o rumo do meu quarto. Mas, novamente, tive que fazer meia-volta, quando ela disse:
- Por falar em química, a Carina interfonou...
- I-interfonou? - Tentei não gaguejar, mas quando se tratava da Carina, era impossível.
- É. - Disse minha mãe, já na mesa. - Ela pediu pra avisar que vai se atrasar pra aula particular que ela marcou com você. Disse que vai ter que dar uma passada na escola. Parece que ela perdeu uma agenda lá e quer ver se algum funcionário encontrou...
Meu coração encolheu.
- Perdeu, é? - Perguntei num fio de voz.
- Perdeu. - Confirmou minha mãe, servindo berinjela pro Thiago, que fez uma careta ainda pior que a minha. - Ela parecia bem chateada...
Meu coração se encolheu ainda mais. Que tipo de cara eu era, meu Deus? Enquanto a menina que eu amava sofria por ter perdido a agenda, eu ali, preocupado em entrar logo no meu quarto e bisbilhotar todos os segredos dela! Eu tinha dentro da minha mochila o objeto que poderia devolver a ela toda a tranquilidade do mundo, e estava mais interessado em esmiuçar tudo o que ela guardava dentro daquelas páginas! A excitação que tomara conta de mim desde que eu encontrara a agenda, foi se aquietando no fundo do meu coração. Eu já não suava frio, nem sentia necessidade quase urgente em me trancar no quarto. Respirei fundo. Joguei a mochila em cima do sofá e cheguei até a mesa.
- Acho que vou comer um pouquinho, mãe... - Disse com a voz quase estrangulada.
- Então vai tomar banho primeiro... - Ela mandou. - Você tá cheirando galinha molhada...
E desgostoso de tudo, me tranquei no banheiro.

* * *
- Dona Dulce?
- Oi, Marcelo... Como vai?
- Ah, vai indo... - A mão trêmula segurando o interfone. - A Carina tá aí?
- Ah, ela tá deitada, meu anjo... - Respondeu dona Dulce. - Ela voltou da escola agorinha a pouco... Parece que ninguém achou a agenda dela...
- E... co-como é que ela tá? - Perguntei, tentando disfarçar a angústia e o bolo que me sufocava a garganta.
- Ah, daquele jeito, querido... - Comentou dona Dulce num suspiro. - Parece que o mundo acabou pra ela... Já falei que depois a gente compra outra agenda, mas sabe como ela é, né?
- Sei... - Disse num suspiro ainda maior que o de dona Dulce. - Diz pra ela que eu liguei, tá?
- Digo sim, querido... Beijinho.
- Outro...
Coloquei o interfone de volta no gancho e fui caminhando meio que de cabeça baixa até o meu quarto. Passei pela minha mãe que já começava a maratona pra voltar ao trabalho, correndo de um lado pro outro, colocando papéis e mais papéis dentro da pasta. Mal ouvi quando ela me deu tchau. Saber que a poucos metros de mim, a Carina estava lá, sofrendo por causa daquela maldita agenda, não me deixou com o astral muito bom, não... Bati a porta do meu quarto com estrondo e, pegando a mochila e deitando na cama, eu a senti novamente entre as mãos. Aquela capa tão bem cuidada... As páginas cor de creme... Tudo parecia tão convidativo, tão insinuante... Minha consciência, no fundo, ainda parecia travar um dilema igual ao de Hamlet. "Ler ou não ler? Eis a questão." Uma parte de mim, bem lá no fundinho, queria que eu lesse, nem que fosse uma página apenas... A outra parte, imaginava uma Carina arrasada, preocupada, que um sacana qualquer estivesse lendo algum segredo bem íntimo... Pensar aquilo, me fez ainda mais mal...
Não. Eu não era um sacana qualquer. Nem deveria ter me passado pela cabeça ficar bisbilhotando, querendo saber do que ela gosta, de quem ela gosta... Eu não acharia legal que fizessem isso comigo.
Eu precisava fazer a coisa certa. Minha curiosidade que se danasse! Foi com esse pensamento, de agenda em punho e coração mais leve, que já estava no hall, esperando o elevador.

* * *

"Coragem, Marcelo! Você só precisa arranjar uma desculpa, que não faça ela ficar puta da vida com você..." Eu mentalizava insistentemente esse pensamento, tentando vasculhar no meu cérebro algo que pudesse dizer. Fiquei com ódio de mim. Eu não devia ter interfonado na casa dela pra assuntar... Agora, qualquer coisa que eu dissesse, ia ser inútil! Já ficava imaginando a cara de reprovação da dona Dulce, como quem diz: "Moleque sem-vergonha! Estava com a agenda o tempo todo e não disse nada! E eu que achava que ele ia ser um genro de ouro..."
Bom, essa última parte foi uma forma que encontrei de descontrair a situação difícil que estava por vir. Enquanto esperava pelo elevador, imaginei o quanto a Carina iria me xingar, o quanto eu tentaria me explicar até que, por fim, ela virasse as costas e dissesse que não queria nunca mais me ver na frente dela... Merda! Só de pensar, dava vontade de chorar... Mas se eu tinha que fazer a coisa certa, também tinha que estar preparado pras consequências que viriam com ela... "Quem sabe ela não fique tão emocionada, a ponto de se atirar nos meus braços e me dar um beijo daqueles?" Confesso que a segunda possibilidade seria muito mais agradável, mas acho que seria um tantinho impossível de acontecer... O elevador parou no meu andar entre rangidos e solavancos. (Prédio velho é uma merda!) Assim que a porta abriu, senti vontade de girar nos calcanhares e descer de escada mesmo... Lá estava o seu Décio, um velhote enjoado e rabugento, e os netos dele (Mustafá, Germano e Afrânio) Sim, era esse mesmo os nomes deles... Eram três moleques, mas valiam por um batalhão inteiro. E o que é pior: eram os melhores amigos do mala sem alça e sem rodinha do meu irmão, o Thiago. Assim que eles me viram, fecharam a cara. Acho que eles ainda se lembravam das porradas que andei dando neles quando me encheram o saco... Entrei, desejando ao seu Décio uma boa tarde, que ele fez questão de não retribuir, apertei o botão do segundo andar e tratei de ficar bem no cantinho do elevador. Quando se tratava daqueles três, era bom não facilitar. Nunca se sabia o que eles iam aprontar. "Coragem, Marcelo... Você vai descer daqui a pouco, eles não vão ter coragem de fazer nada na frente do avô..." A porta do elevador fechou novamente e, eu pude por fim, descobrir que eles não se intimidavam com quem quer que fosse, muito menos com o avô. Mustafá olhou pra mim e, com a maior calma do mundo, começou a apertar todos os botões. Um a um. Do décimo quinto ao térreo. Não ficara um único botão sem apertar! Germano e Afrânio davam risadinhas abafadas, enquanto seu Décio contorcia o bigode me olhando feio, como se eu fosse o culpado por ele ter aquelas pestes por netos. Suspirei, imaginando que poderia muito bem descer no próximo andar e seguir de escadas.
Como eu estava enganado... Quando a porta do elevador se abriu no andar seguinte, o oitavo, entraram dona Telma e as filhas, duas meninas da minha idade, mas metidas até dizer chega. Fiz menção de sair, mas as duas nojentas me barraram a passagem. Tive que comprimir as costas na parede do elevador. Não tive tempo sequer de pedir licença.
Quando percebeu todos os botões estavam apertados, dona Telma torceu ligeiramente o nariz. Olhou feio pra mim, que olhei mais feio ainda pra ela e depois olhou pros três moleques. A viagem prometia ser longa... O elevador desceu mais um andar, o sétimo. O rangido parecia cada vez mais forte. A porta se abriu e vi, com desespero, a próxima passageira: dona Jurema. Carinhosamente chamada por todos no prédio de dona Jamanta. Ela era tão grande e tão gorda, que se houvesse o naufrágio de um transatlântico, todos os passageiros se salvariam se agarrando nela. Assim que nos viu, dona Jamanta abriu um imenso e simpático sorriso, distribuiu meia dúzia de olás e foi entrando.
- Tá lotado! Tá lotado! - Gritei desesperado, sentindo que dona Jamanta à medida que ia entrando, empurrava com sua imensa barriga, as duas filhas nojentas da dona Telma contra mim. Fiquei praticamente sem ar, comprimido entre a parede do elevador e as duas meninas. Mas apesar do sufoco, não pude deixar de sentir um certo prazer quando vi Mustafá, Germano e Afrânio, igualmente prensados contra a parede do elevador.
- Ora, Marcelinho... - Disse dona Jamanta com um sorriso. - Isso aqui é igual coração de mãe: sempre cabe mais um!
Eu não sabia se ria ou se chorava. Comprimi a agenda contra o peito, preocupado de que o peso de dona Jamanta e aquelas duas enjoadas em cima de mim pudessem amassá-la. Tudo bem se eu quebrasse uma ou duas costelas, mas a agenda da Carina, não podia sofrer um arranhão sequer! A porta do elevador se fechara novamente e, ao invés do rangido familiar, o que ouvimos foi algo bem diferente. O barulho do motor roncava e os solavancos ficaram mais fortes. Um cheiro de queimado parecia querer invadir a cabine. Dona Telma arregalou os olhos. Um último solavanco pra baixo e o elevador parou. As luzes foram falhando, falhando, até que tudo ficou na mais absoluta escuridão.
Foi um desespero só! As filhas da dona Telma começaram a gritar, desesperadas, sapateando feito doidas. Tudo bem, não fosse pelo fato de as duas estarem a poucos centímetros dos meus ouvidos e os seus pés estarem praticamente em cima dos meus. Seu Décio teve o bom senso em apertar o botão de emergência. Uma campainha soou alta. Uma, duas, três, dez vezes e nada do zelador aparecer. Com certeza o coitado devia estar em horário de almoço, puxando um ronco, sei lá... Mais uma vez, seu Décio fez soar a campainha. Uma, duas, três, vinte vezes... Nada ainda. O jeito seria esperar. Mas não seria fácil. Meu corpo todo havia ficado dormente. Tentei mexer os pés, que formigavam violentamente, mas as duas enjoadas continuavam empoleiradas em cima deles. Bom, pelo menos elas tinham parado de gritar. Todos já pareciam devidamente acostumados com aquilo quando alguém soltou um "ai".
- O que foi? O que foi? - Perguntou dona Telma em desespero.
- Meu Deus... Estou com... falta de ar... - Foi só isso que dona Jamanta teve tempo de falar. A velha simplesmente desmaiou! E como não havia espaço suficiente naquele cubículo pra uma pessoa do tamanho dela cair, ela simplesmente começou a despencar em cima de nós. O que aconteceu então, foi uma luta pela vida... Dona Jamanta vinha despencando e nós a empurrávamos pra trás. Ela despencava, a gente a empurrava pra trás. Ficamos nisso acho que uns quinze minutos, enquanto dona Telma e as filhas gritavam por socorro e o seu Décio apertava insistente, o botão de emergência. Quando eu achava que nada mais podia ficar pior, escutei alguém tendo engulhos. Pra quê! Mal tive tempo de mexer: não sei quem foi. Se foi o Afrânio, o Germano ou o Mustafá, mas um deles, gritou um hugo nervoso ali dentro. Senti a minha perna toda salpicada de vômito e o cheiro que subiu era insuportável... "E eu que queria apenas devolver uma agenda! " Pensei enquanto não sabia se sentia nojo, se empurrava a dona Jamanta pra trás e evitava morrer amassado, ou se sentia dor nos pés e nos ouvidos, com o peso e o grito daquelas duas. Aquilo pareceu uma jornada ao inferno, uma verdadeira eternidade! Dona Telma encheu a cara da pobre da dona Jamanta de bofetadas até fazer a infeliz acordar. Quando ela finalmente pareceu recuperar a consciência, ouvimos um estalido e a porta do elevador foi forçada manualmente, até abrir por completo. Até que enfim! A cavalaria chegara! Foi um verdadeiro alívio... Todos, exceto eu, saíram mais que depressa dali de dentro. Eu permaneci estático, pregado à parede. Me atrevi a dar um passo, mas as pernas não obedeciam. Tentei falar alguma coisa, mas o ar parecia me faltar... Só consegui sair dali com a ajuda do seu Humberto, o zelador. Ele fez com que eu me apoiasse nele foi me tirando bem devagar dali de dentro... Meu Deus, que mico! Que King Kong! Enquanto eu buscava forças pra massagear as pernas, ouvi uma inacreditável dona Jamanta falando com o ar mais cândido do mundo:
- Esse elevador precisa de revisão, seu Humberto... Não sei o que fez ele travar desse jeito!
Ninguém merece!
* * *
Passado todo aquele sufoco e com a perna devidamente limpa dos salpicos de vômito e já recuperada dos pisões, decidi descer até o apê da Carina de escadas. Fui descendo devagar, degrau por degrau. Era bom não abusar... Assim que terminei o primeiro lance de escadas, entendi porquê.
Uma cãimbra pareceu rasgar a minha panturrilha ao meio. Senti uma dor tão intensa, que perdi as forças. Segurei com uma das mãos no corrimão e antes que eu pudesse impedir, a agenda da Carina rolou escada abaixo, indo parar a alguns centímetros longe de mim. Sentei num dos degraus e massageei devagar a perna. Parecia que tinham fincado uma faca! Assim que melhorei, tratei de me levantar devagar. Olhei pra baixo. A agenda da Carina, ali no chão, estava aberta. Pra quem quisesse olhar. As folhas balançando suaves, convidativas. O desejo de bisbilhotar quis se apoderar de mim. Eu ainda poderia saber qualquer coisa sobre ela... Do que ela gostava... De quem ela gostava...
Não. Eu não devia. Afastei esse pensamento e desci os degraus seguintes para pegá-la do chão. Se ela gostasse de alguém, não era da minha conta! Ou melhor, seria da minha conta, se fosse de mim que ela gostasse...
"Mas se ela gosta de mim, provavelmente, está escrito na agenda..." Senti aquele diabinho fincando meus pensamentos e minha consciência com seu garfinho.
NÃO! NÃO! MIL VEZES NÃO! Eu não vou olhar!
Me abaixei para pegá-la. Continuava firme no propósito de não ler nada que estivesse escrito ali.
Mas o que vi, era tão grande, tão evidente, que era impossível não ler...
A folha estava ali. E me mostrava algo, que, no começo, eu não queria acreditar...
Segurei a agenda. As mãos tremendo, o coração palpitando forte.
Ali, na única folha que não deveria ter sido aberta por mim, ali, naquela página, estava a resposta pra minha grande dúvida.
Senti os olhos se encherem de lágrimas.
Naquela página, havia um imenso coração vermelho, atravessado não por uma, mas por várias flechas. E dentro dele, escrito em dourado com letra bonita e legível, vi desgostoso as inicias C e C.
CARINA E CRISTIANO...
Então, ela estava namorando, ficando ou sei lá mais o quê com o Cristiano Labate, da oitava C...
Eu devia saber. Era muita pretensão da minha parte achar que uma menina como a Carina, fosse olhar pra mim... Era ingenuidade minha achar que ela fosse capaz de resistir às investidas do Cristiano... Burra da menina que não topasse ficar ou namorar com ele.
Senti as pernas bambas e me vi obrigado a sentar no chão. Não era efeito da cãimbra ou dos pisões das filhas da dona Telma, mas antes fosse...
Eu não tinha mais forças pra nada, a não ser chorar. Meu coração foi se aquietando de um jeito tão assustador, que eu pensei que ele fosse desaparecer de dentro do meu peito. Era uma dor tão funda, tão terrível, tão insuportável, que teria sido melhor morrer a enfrentá-la...
E entre choros, soluços, dores que pareciam não querer acabar nunca, uma sensação de vazio, de que o mundo perdera a cor e de que todas as borboletas em meu estômago morriam de tristeza naquele instante, fiquei ali, largado entre os degraus daquela escada. Querendo que garotos bonitos como Cristiano Labate não existissem, querendo que o mundo acabasse de vez. Ou, se não acabasse, que ao menos ele fosse do tamanho de um elevador escuro e quebrado. Bem menos triste e assustador...
(Continua)